Retrato de meu Pai, moço no sonho
Que o nimbo de tais anos esvaece,
Não se pode dizer que está risonho
Nem tão pouco com o triste se parece.
Companheiro de mesa de escrever,
Não me olha, para não me distrair;
Mas, se assobio, como o ouvi fazer,
São bem meus versos que ele vem logo ouvir.
Pai, como és sério com a rosa ao peito,
Toda branca e rodeada de folhinhas!
E o bigode cofiado, ainda no jeito
Do primeiro namoro que tu tinhas...
O gesto claro, ermo na barba escura
Que eu conheci de mel nos anos breves,
E esses olhos de amêndoa, e a testa pura,
Fonte de tudo o que eu escrevendo escreves!
Aquele Numquid et tu que me ensinaste,
Antes de Gide o pude pronunciar:
Flor do que faço, és dela o aroma e a haste;
Mestre, como te posso renegar?
Ficas no iodo do retrato antigo
Com a gravata branca de poeta,
Que, perto ou longe, sempre é estares comigo,
Como o aço e o tremor estão na seta.
E vamos ambos desferindo a vida
Comum no canto mútuo em ti calado:
Tu, no meu verso, tua flauta ouvida;
Eu, buscando-te a voz no búzio herdado.
(Vitorino Nemésio-in "O Bicho Harmonioso")
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