O mundo ao contrário |
226 mil mortos |
LUÍS OSÓRIO
Todos os telejornais e publicações de referência, há menos de uma semana, abriam os alinhamentos com reportagens, balanços, análises e comentários sobre a tragédia no Sudeste asiático. Vimos imagens de crianças à deriva, crianças que tinham acabado de perder os pais e olhavam o mundo como se estivessem esquecidas num pesadelo que, no momento em que as olhámos, julgam poder acabar no minuto a seguir.
Correram os dias, e o tsunami, palavra que entrou no léxico do mundo, foi substituído nos alinhamentos dos editores de informação, naturalmente trocado por novos assuntos que ofereçam a suprema ilusão de que o País e o mundo estão em contínua mudança e que nessa mudança há novas e meteóricas personagens.
Mas as grandes tragédias, ironia das ironias, assemelham-se às grandes festas de um deprimido. Ele dança, bebe, tenta retirar da festa tudo o que lhe é possível, mas depois de todos saírem, quando regressa à solidão e ao insuportável silêncio, o seu estado de angústia é muito superior.
Hoje, nos cenários devastados pela natureza, quase já não existem jornalistas. Retirados de cena pela lógica do mercado deixaram a amaldiçoada terra entregue a si própria, aos escombros, ao cheiro a morte e aos fantasmas em que se converteram os que tiveram a sorte de sobreviver.
Este é o momento decisivo, o momento em que nada do que está a acontecer é qualificável ou tem possibilidade de ser descrito, um momento que não pode ser captado pelas televisões e que dificilmente poderia ser descrito por um repórter mais talentoso. Neste instante, quando as câmaras estão já a ser limpas e calibradas para outras tragédias, as crianças que antes julgavam estar a viver um pesadelo sabem que, afinal, não se trata de um sonho mau.
Há crianças e adultos que continuam a morrer nos campos, dezenas de corpos que se amontoam na desesperança, que continuam a matar e a morrer para conseguir alguma comida, existem também os que os que procuram familiares e se aproximam da loucura, os que raptam indefesos nos campos de refugiados, os que gritam nos hospitais. Nenhum de nós, agentes de informação, dá hoje aos leitores notícias detalhadas sobre a barbárie, achamos que o assunto está morto. O que não deixa de ser verdade. O assunto está morto, mas é fundamental ter consciência de que, na terra da morte, os que sobreviveram estão agora entregues a si próprios, tal e qual os depressivos depois de uma grande festa.
As agências ontem fizeram um novo balanço. Duzentos e vinte e seis mil mortos. O número continuará a crescer. Mas agora estão por sua conta. Como único consolo, alguns contam com a solidariedade abstracta de um mundo que aprenderam a odiar.
(in Capital - Luis Osório )
Correram os dias, e o tsunami, palavra que entrou no léxico do mundo, foi substituído nos alinhamentos dos editores de informação, naturalmente trocado por novos assuntos que ofereçam a suprema ilusão de que o País e o mundo estão em contínua mudança e que nessa mudança há novas e meteóricas personagens.
Mas as grandes tragédias, ironia das ironias, assemelham-se às grandes festas de um deprimido. Ele dança, bebe, tenta retirar da festa tudo o que lhe é possível, mas depois de todos saírem, quando regressa à solidão e ao insuportável silêncio, o seu estado de angústia é muito superior.
Hoje, nos cenários devastados pela natureza, quase já não existem jornalistas. Retirados de cena pela lógica do mercado deixaram a amaldiçoada terra entregue a si própria, aos escombros, ao cheiro a morte e aos fantasmas em que se converteram os que tiveram a sorte de sobreviver.
Este é o momento decisivo, o momento em que nada do que está a acontecer é qualificável ou tem possibilidade de ser descrito, um momento que não pode ser captado pelas televisões e que dificilmente poderia ser descrito por um repórter mais talentoso. Neste instante, quando as câmaras estão já a ser limpas e calibradas para outras tragédias, as crianças que antes julgavam estar a viver um pesadelo sabem que, afinal, não se trata de um sonho mau.
Há crianças e adultos que continuam a morrer nos campos, dezenas de corpos que se amontoam na desesperança, que continuam a matar e a morrer para conseguir alguma comida, existem também os que os que procuram familiares e se aproximam da loucura, os que raptam indefesos nos campos de refugiados, os que gritam nos hospitais. Nenhum de nós, agentes de informação, dá hoje aos leitores notícias detalhadas sobre a barbárie, achamos que o assunto está morto. O que não deixa de ser verdade. O assunto está morto, mas é fundamental ter consciência de que, na terra da morte, os que sobreviveram estão agora entregues a si próprios, tal e qual os depressivos depois de uma grande festa.
As agências ontem fizeram um novo balanço. Duzentos e vinte e seis mil mortos. O número continuará a crescer. Mas agora estão por sua conta. Como único consolo, alguns contam com a solidariedade abstracta de um mundo que aprenderam a odiar.