Reportagem: Sendim
Cantam o "amor agrícola, à luz da candeia", uma corrente musical progressiva a que alguém já chamou "surrealismo rural". Os Pica Tumilho gabam-se de ser o maior grupo de rock agrícola do mundo e deixam um aviso prévio ao público: quem assistir aos seus concertos "arrisca-se a levar para casa uma sachola autografada". São dez da manhã no Café Sendinês, chove ruidosamente nesta vila que parece ser um epifenómeno musical na região, capaz de gerar mais bandas diferentes por metro quadrado do que qualquer outra localidade mirandesa. Emílio Martins (vocalista, vozes estranhas, saltos, gritos e letras) e Bruno Peres (teclas apoiadas em fardos de palha) lamentam que os outros três membros do grupo estejam ausentes. "Deviam conhecê-los, são piores do que nós. São cá uns cromos..."
A comparência desses "cromos" em Sendim, terra natal do projecto, é impossível quando quase todos moram já fora da vila, um dos membros da banda está prestes a ser pai e os outros têm os seus afazeres profissionais, empregos comuns. O hard rock etnográfico, cantado em mirandês, que este professor de Estudos Sociais e aquele engenheiro mecânico criaram, não chega nem para pagar as contas dos Pica Tumilho. "Todo o dinheiro que a banda ganha é para investir na banda", juntamente com a ajuda de familiares que emprestam estábulos e palheiros para ensaios, um ambiente essencial para que o espírito criativo destes homens se debruce sobre a interioridade rural e a sátira "a amores de perdição como o de Camilo Castelo Branco, ao romantismo exagerado"que não cabe no quotidiano mais prosaico. Afinal, o mirandês "é idioma optimista e bem disposto, contrário a desesperos", explicam atropelando-se um ao outro às gargalhadas.
A crítica social do grupo, que garante beber inspiração "em grandes bandas dos anos 80 - Pink Floyd, Deep Purple, Led Zeppelin ou Marillion", chega também "às péssimas condições das estradas de Trás-os-Montes, aos subsídios desbaratados da União Europeia e à defesa dos interesses dos agricultores". Enquanto aprecia um tranquilo café, Emílio - prestes a baptizar a sua primeira filha - divaga sobre a sonoridade criada em 1998: "Estamos para as sacholas e forquilhas como um grupo de rock industrial está para a utilização de sons de rebarbadeiras e berbequins". O primeiro e único disco editado até agora, Sacho, Gaçpóia i rock'n' roll ("sachola, vinhaça e rock'n'roll"), pela Sons da Terra (do Porto), é prova disso. Por mais que se tente aqui descrever o ambiente musical de canções como Mundabas i palheiro ("reflexo das paixões vividas outrora pelas gentes do Nor-deste transmontano, relacionadas melindrosamente com certas actividades de teor agrícola") ou Ai que cochino! (história de um porco que teimava em não morrer no acto da sua matança), o melhor é mesmo ouvi-las.
Avancemos agora para o ambiente de palco, que os dois membros da banda acedem a recriar. Enquanto o pai de Emílio vai buscar o tractor e se ri com as actividades do filho - "é maluco, mas como não é nada de drogas...e a esposa também não se importa..." -, o vocalista coloca uma cabeleira e uns óculos especiais. À semelhança das grandes óperas-rock, também os Pica Tumilho criaram duas personagens que os acompanham para todo o lado, o casal Florinda e Alfredo Pica, e que querem ver transpostos para uma banda desenhada em mirandês. Florinda é "uma donzela do campo, singela, meiga, trabalhadeira, madrugadora, que não perde uma missa, fã de música pimba". Já Alfredo "é um vadio, bebedolas, preguiçoso, playboy, roqueiro por natureza, que não perde uma noitada na discoteca". Reza a canção Se quejires ser labrador (ténes que tener un trator) que Florinda se lançou nos braços de Pica depois de saber que este adquirira um tractor de mil cavalos, "no fundo uma crítica aos abusivos projectos agrícolas extraídos à CEE", pois claro.
Já actuaram em "muitos lados" os Pica Tumilho - expressão que descreve o trabalho comunitário, feito em tempos ancestrais, de cortar em bocaditos giestas, tomilho e outras plantas selvagens, para depois as juntar ao estrume de animais e deixar a fermentar durante um inverno inteiro, alquimia para obter um precioso fertilizante. Começaram no festival Ga-rock 98, em S. Pedro da Silva, de onde saíram "como heróis" graças a esta mistura explosiva de rock e lavoura. Passaram por Braga, Vila Real, Macedo de Cavaleiros, "quase todas as aldeias do distrito". E querem ir mais além, embora "às vezes não tenhamos dinheiro".
Posam para as fotografias relembrando que os seus espectáculos começam sempre com "uma abertura insuflável que representa uma burra montada por uma mulher de biquíni, como se o campo fosse a praia". A partir daí é o desvario, com motores de rega a disparar fogo-de-artifício no palco, uma bigorna, alambiques, martelos e marras, serrotes e bidões - a juntar a instrumentos mais tradicionais. "Os Sétima Legião são uma banda que se identifica com o mar e isso reflecte--se no seu cenário, nós retratamos o quotidiano rural". Vestidos de camisas de linho e calças de pardo (lã de ovelha), "divertimo-nos à grande". Olhando pra eles, ninguém duvida - disso e das intenções de fazer uma tournée em cima de um tractor, ao melhor jeito de Uma História Simples, de David Lynch. O avô de Emílio, que também ali mora, aproxima-se. Quer saber se já vamos embora. Vamos. "Não querem levar ao menos uma cebola?"
Eu tambem os achei fixe, alguem me consegue arranjar nem que seja uma só musica
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